14.2.07

Porto

A luz baixa do sol já lhe ofuscava a cara, obrigando-o a fechar os olhos, mesmo sem querendo fazê-lo. Quanto mais remexia os pés, agora gelados pela temperatura ainda baixa daquela água, menos vontade tinha de sair dali. Por vezes perguntava-se se aquela ideia de inexistência de sentido que vivia não lhe traria um sentimento de escárnio pelo que a outragem parecia viver. Só os homens da magrugada, rotineiramente parados naquele porto onde calmamente remexia os pés, o fascinavam já. A cada um, tentava viver-lhes cada percurso. Em longos momentos, variando entre pés molhados ou costas reconfortadas no muro, imaginava entrar-lhes naquele corpo envelhecido pelo sal, divagar cada ideal que tão serenas mentes criaram. Nesta banalidade vivia, interrogando-se da própria estranheza de tal quotidiano. Naquele novo mas não por isso diferente dia, uma nova vaga de vento lhe contava que mais um dos reis daquelas águas estava a caminho. Aquele vapor preto emancipava-se sim, no meio de tanta vermelhidão pelo sol trazida, de forma a que se assemelhava a si próprio, homem que era ali sentado. Tinha especial gosto em rir-se por dentro, analisar a insolência de sujeitos estereotipados que entre dentes comentavam a sua imaginada desgraça. Pobre vida, a de viver junto ao mar sem nunca nele entrar... Porém, intacto a objecções, apreciava que assim o considerassem. Dependência, apenas a tinha do já esquecido nascimento e da vindoura morte. Entre isso, evadia-se do seu próprio percurso, diferente dos pescadores que olhava, diferente da gente que o comentava. A tal felicidade tão necessitada surgia-lhe aos poucos e poucos, sempre perfeita, nunca eufórica, nunca escassa. Olhava agora os pés arroxeados, e lembrava com saudade mais digno homem que tão admiravelmente vivera no barco abandonado parado à sua frente. O sentido da vida é a inexistência deste nesta, escrevera-lhe ele no bloco de notas que sempre tinha consigo. De corpo enterrado na terra, a alma de tal homem pairava sobre si e aquele barco.

1 comentário:

Anónimo disse...

O texto ta lindissimo, a personagem é muito intrigante, gostei muito de ler o ponto de vista dela e o que ela pensava... acho que ficou mesmo maravilhoso
"o sentido da vida é a inexistencia deste nesta" hummm esta frase lembra-me qualquer coisa...