27.2.07

Deus

Eu queria tanto acreditar
Que desta porfia de fim
Um dia me virás buscar
Um dia me porás um fim

E que em teus braços dormirei
Leve, calma e desalmada
Livre do que neste mundo já carreguei
Livre de toda a ilusão criada

Mas tua fé não me move
Assim, aqui, me prende a razão
De que um dia, sendo nada, morrerei
De que um dia pensei ser tudo, em vão

24.2.07

Óbolo

Desconheces porque vives
Sê então absorto e mudo
Cria apática solução
Pensar? Tudo.

Ignora os tremores que
Tentam manter-te levantada
Desfaz-te de emoções
Sentir? Nada.

E quando tiveres de pagar
Pelo dever de existir
Não vais ter nada a dar
Pois nada te fez sorrir

19.2.07

Vício

Vais aguentar, vais pensar que vai passar. Vais irritar-te, estruturar o comportamento padrão da atitude. Vais suportar, aguentar porque alguém sempre cede. Vais cansar-te, vómito pela eterna cedência da tua parte, de não quereres e não parares. Vais torturar-te, pela permissão que me dás, por levares tudo que não te diz respeito. Vais então tentar, tentar o outro lado, desafiar o que constantemente mexe nos cordões do que és. Vais chorar. Exasperante, vais gritar até não poderes mais. Vais destruir, espancar e ferir sem teres noção. Vais questionar o impensável, vais repensar o inquestionável, em pura agonia de dúvida vais querer o fim. Extâse após extâse vais enlouquecer, enlouquecer sem conseguires ou quereres parar. Não saberás mais o que fazer, não sabes já por onde optar, não sabes sequer o que manter, o que eras ou serás. Vais odiar, odiar o que não sabes como vem mas que sabes que virá. Vais errar, vais ignorar a tua ignorância e em impulsos animais vais desabar o que tens vindo sem proveito a construir. Em pânico vais pensar que tomaste a rédia. Vais mas não tomas. Vais tudo porque eu consigo. Consigo e quero conseguir. Quero porque preciso, ou não faria sentido.

14.2.07

Porto

A luz baixa do sol já lhe ofuscava a cara, obrigando-o a fechar os olhos, mesmo sem querendo fazê-lo. Quanto mais remexia os pés, agora gelados pela temperatura ainda baixa daquela água, menos vontade tinha de sair dali. Por vezes perguntava-se se aquela ideia de inexistência de sentido que vivia não lhe traria um sentimento de escárnio pelo que a outragem parecia viver. Só os homens da magrugada, rotineiramente parados naquele porto onde calmamente remexia os pés, o fascinavam já. A cada um, tentava viver-lhes cada percurso. Em longos momentos, variando entre pés molhados ou costas reconfortadas no muro, imaginava entrar-lhes naquele corpo envelhecido pelo sal, divagar cada ideal que tão serenas mentes criaram. Nesta banalidade vivia, interrogando-se da própria estranheza de tal quotidiano. Naquele novo mas não por isso diferente dia, uma nova vaga de vento lhe contava que mais um dos reis daquelas águas estava a caminho. Aquele vapor preto emancipava-se sim, no meio de tanta vermelhidão pelo sol trazida, de forma a que se assemelhava a si próprio, homem que era ali sentado. Tinha especial gosto em rir-se por dentro, analisar a insolência de sujeitos estereotipados que entre dentes comentavam a sua imaginada desgraça. Pobre vida, a de viver junto ao mar sem nunca nele entrar... Porém, intacto a objecções, apreciava que assim o considerassem. Dependência, apenas a tinha do já esquecido nascimento e da vindoura morte. Entre isso, evadia-se do seu próprio percurso, diferente dos pescadores que olhava, diferente da gente que o comentava. A tal felicidade tão necessitada surgia-lhe aos poucos e poucos, sempre perfeita, nunca eufórica, nunca escassa. Olhava agora os pés arroxeados, e lembrava com saudade mais digno homem que tão admiravelmente vivera no barco abandonado parado à sua frente. O sentido da vida é a inexistência deste nesta, escrevera-lhe ele no bloco de notas que sempre tinha consigo. De corpo enterrado na terra, a alma de tal homem pairava sobre si e aquele barco.

7.2.07

Homem de Fato e Chapéu

Intacto no seu alheamento
Caminha nas suas largas passadas,
Longas e calmas, pisa
Incontavelmente, o chão da sua Lisboa.

Distante do agora
Da linha visionária da sua estatura.
Doirado pelo sol,
Inverte o já descido Chiado.
De tique, ajeitando o chapéu negro
Que lhe aquece confortávelmente a cabeça,
Sobe do Rossio, do mar invasor.


O silêncio solarengo, invulgarmente citadino,
Atrai pássaros a gritarem do alto, de
Cada prédio em que se reflecte a vivência banal, cantada.
De encontro a Pessoa, pensa em si.
Seus ideais imortalizados em palavras, dignos.

Calmamente,
Um banco acorda-o para o cansaço suportável das pernas.
Sentado, retira do bolso o seu bloco e caneta.
Rê-le o já escrito, olha o céu,
E acrescenta-lhe o pensamento sedado pela tranquilidade preenchente.
Pousa as mãos, já livres, no banco aquecido pelo sol,
Divaga mais um momento imaginário.

Sobe finalmente para Camões.
A este a luz não ilumina como fizera a Pessoa...
De pé, descansou.
De janelas fechadas ao mundo, pressentiu que o sono do sol chegara,
E voltou a descer.

Novamente, Chiado. Diário ponto de partida e chegada.
Olhou fixamente o raio último do sol.
Fechou os olhos, pensou,
"Mais um", sorriu.
Desapertou a gravata, retirou o chapéu.
Entrou em casa.

Frustração

Calma, porém fervosa, lamenta ciclosamente. Que é feito da convicção que a preenchia? Quimera cingida de inexplicável...questiona então a extraordinariedade. Afinal, seria assim? Iria para sempre a sua fraqueza tão humanamente vingadora cortar-lhe o ilimite da ânsia por mais? Já lhe é impossível visionar outro caminho, por onde quer que a alma sonhadora a leve, a sua própria humanidade fá-la recuar tudo de súbito, prova-lhe que lhe é impossível volver à inocência. Desespero completo por vómito...o que lhe entra a nada lhe sabe já, gosto impensável de desprezo. Vómito então de indesejo, mosto tépido de insatisfação sentida. Tal a conduz ao mais paradoxal, cepticismo...nada, frustação incorrecta existencial. O vómito para si? Assemelha-se a outros como desejo de atenção, o fim do princípio de necessidade. E então, o ódio. Não tem bem a certeza se ódio, mas um descontentamento imenso. Ódio pela incompreensão das criaturas alheias ao seu próprio mundo. Ódio de bipolar desejo, contraditório, de quente contacto e isolamente solitário. Ela e as palavras. Ah, que frustração a incerteza! Que tamanho criador tira prazer de tal tormento? Enoja-lhe a própria fragilidade, o saber que continua não só por si, mas por tais entes que juram sentir. Assim conhece que lhe é inultrapassável este estado, este vaivém de julgamento e porfia. E enfim, deste único modo vive, não sabe se pela tímidez do sentimento, se pela benevolência da condição humana. Frustração dispersa em si.